Eu tinha apenas doze anos quando aquilo aconteceu. De início, foi apenas uma coincidência. Seraph de Cefeu, a mais antiga Amazona da Ilha de Andrômeda e considerada por todos como a capitã dos recrutas, estava de patrulha quando sentiu uma perturbação próxima da floresta chamada Planalto de Eritreia. Ela seguiu na direção de onde tal sensação estava vindo, e acabou em um tipo de vilarejo na parte oriental da floresta. Chamado Lustwood, o vilarejo estava dividido em duas partes: uma mais acima e outra mais abaixo, a segunda mais próxima de um rio. Era bem organizado. As casas de adoração no centro deixavam claro que eles seguiam alguns valores religiosos e tinham até mesmo um tipo de líder, que aqui chamaremos de prefeito, para tomar conta do vilarejo como um todo. Foi com ele que Seraph conversou na intenção de descobrir o que poderia estar acontecendo. O homem relutou, mas cedeu depois de muita insistência da mulher.
Ele explicou que faziam alguns dias desde que criaturas estranhas passaram a ser notadas pelos arredores. Um grupo de crianças foi pego enquanto brincavam, e de cinco só duas voltaram. Elas descreveram o bicho que as atacou como alto, corcunda e sem um rosto reconhecível. Por serem um tanto religiosos, os civis passaram a chamá-los de um termo local que traduzido para o nosso idioma significava simplesmente... demônios. Seraph decidiu que precisavam ajudar aquele povo, então ela reuniu um grupo de cavaleiros e aspirantes para caçar pelas redondezas e acabar com os problemas de Lustwood. Mas foi a partir daí que as coisas começaram a ficar macabras.
Paralelamente às aparições dos monstros — que, de fato, eram bem diferentes do comum e ninguém da linha de frente tinha visto algo do tipo —, alguns civis de Lustwood começaram a agir de forma estranha. Começava com acessos repentinos de agressividade, para depois começarem a agir como zumbis e tentarem ferir qualquer um que tentasse chegar perto. Depois de examinar um dos possíveis doentes, nossa líder notou que os sinais indicavam uma única coisa: possessão.
E é aqui que eu entro nessa história.
— Como eram muitos, Seraph pediu que um grupo bem maior fosse até lá para ajudar na recuperação dos civis.— falei, explicando para um novato o motivo de um grande grupo estar todo se mobilizando para uma única missão. Fora os três que seguiram com Seraph da primeira vez, agora mais nove pessoas estavam se juntando, totalizando doze pessoas reunidos em prol de um único problema. Apesar de tentar acalmar o novato, eu mesmo estava apreensivo, afinal, mesmo depois de anos de treinamento naquela ilha nem mesmo eu não tinha ouvido falar de uma tarefa que precisasse de tanta gente.
A viagem até Lustwood foi inquietante. Eu não era o único preocupado afinal. Já tentou ficar em um lugar cheio de cavaleiros preocupados emanando sua preocupação pelo cosmo fazendo todos próximos se tornarem ainda mais nervosos? Eu já, e garanto que não é algo legal. Assim que pisamos no vilarejo, já fomos logo sendo levados para onde Seraph tinha montado a "central de tratamento". Localizado no subterrâneo da parte baixa do lugar, o primeiro grupo tomou de conta do que seria um antigo armazém. E posso falar? Um
puta armazém. Parecia ser tão grande quanto o vilarejo, e pelo o que notei ainda descia ainda mais. Eu me questionei a necessidade da construção de um lugar daqueles, mas logo não tive mais tempo para meus próprios pensamentos.
Foi uma visão infernal. Várias pessoas presas em celas improvisadas, todas separadas umas das outras. A sua pele estava estranhamente pálida, e o fundo dos olhos estavam tão esverdeados que chegava a ser incômodo encarar por tempo demais. Assim que nos notavam, elas avançavam contra as barras de madeira que as impediam de sair dali. Muitos colocavam tanta força em tentar escapar que começavam a sangrar. Alguns pareciam ter arrancado as próprias unhas, mostrando as pontas dos dedos em carne viva. Seus sons eram apenas grunhidos, como se nenhuma humanidade tivesse restado ali. Mesmo os cavaleiros mais experientes pareceram sentir o impacto em um primeiro momento, então imagine o nível de estresse que foi para mim e os outros aspirantes? A gente simplesmente não sabia o que fazer. Minha reação foi apenas me encolher ali mesmo onde eu estava e desviar o olhar.
O silêncio foi cortado pela voz da líder ecoando no ambiente. Seraph desceu a escadaria que levava até o lugar acompanhada pelo prefeito e uma outra mulher. Apesar de ainda parecer consciente, a mulher já estava com alguns rastros esverdeados cobrindo seus olhos. Não foi necessário avisar que aquele era um dos sintomas do problema que Lustwood estava por enfrentar. Ela se sentou numa cadeira próxima e abaixou a cabeça, no que a líder se aproximou e pediu para que nos reuníssemos em um canto. Assim o fizemos, e enfim tivemos o primeiro contato com os detalhes da situação.
— Eu nunca vi algo assim. — começou ela, no que todos nos mantivemos calados e atentos, com o único som possível de se ouvir durante a pequena pausa feita sendo a nossa própria respiração
— Quando chegamos aqui eram no máximo quatro pessoas desse jeito que estão vendo. Agora devemos ter pelo menos vinte, e mais vão aparecendo a todo momento. O número quintuplicou em um pouco mais de três dias, como um vírus se espalhando pelo ar. Mas não é uma doença que pode ser tratada com remédios, não é uma doença pertencente ao mundo físico. Está no plano espiritual, eu senti. Acredito que agora que estão aqui vocês também são capazes de ter a mesma sensação. Esse lugar está lotado.Uma coisa que é importante mencionar nesse caso é que possessões não são tão comuns quanto as igrejas e filmes tentam fazer parecer. Sim, espíritos existem, mas no geral eles não tentam tomar o corpo de alguém. É uma "subvida" quando o fazem, uma vez que não são mais compatíveis com o plano físico. Os danos colaterais são diversos, sobretudo para o hospedeiro que pode até mesmo morrer com o choque (e o espírito se ver condenado ao seu plano novamente). Com isso explicado, casos de possessão de fato são muito raros. É difícil até que uma mesma pessoa presencie mais de um caso em vida. Tipo aquela história do raio cair duas vezes no mesmo lugar, sabe? O alarmante é o raio ter caído em Lustwood não duas, mas vinte vezes e aumentando. É surreal.
Agora sobre o comentário do "lugar estar lotado". Seraph sempre teve uma afinidade muito especial com o Mundo Inferior. Sim, ela era uma Amazona de Athena, mas algo sobre os domínios de Hades pareciam rodear sua mente e dizem que desde jovem ela é capaz de ver fantasmas. Pode parecer algo absurdo, mas considerando a existência dos espectros... bem, o que seriam simples espíritos para o Rei do Submundo? E o que são os espíritos se não almas sem um corpo? Tudo o que precisei foi fechar os olhos e me concentrar por alguns segundos para entender o que Seraph estava querendo dizer. Eu não tenho a mesma sensibilidade que a Amazona de Cefeu, mas toda a atmosfera daquele lugar era por demais macabra e me dava calafrios. Não só ali embaixo, mas como toda a Lustwood parecia estar infestada dessa energia negativa. Eles estavam por todos os lados. Eram tantos que eu senti meu corpo esfriar só de imaginar o que aconteceria se todos eles tentassem possuir alguém. Os cavaleiros saberiam se cuidar e se livrar de algo do tipo, mas e todos os outros civis?
Tal situação colocava dois objetivos naquela missão: ajudar de alguma forma as pessoas afetadas a voltarem a normal, e também cuidar para
exorcizar aquele vilarejo para que elas não voltem a enfrentar tal problema no futuro. Exorcizar uma pessoa vai de cada caso, depende de vários fatores como o comprometimento do possuído bem como o poder do espírito que está possuindo, e mesmo sensitivos experientes como Seraph podem encontrar dificuldade em algumas situações. Banir espíritos de um local também depende do fator poder dos espíritos sendo banidos. Ter Seraph nos direcionando tirava um grande peso das minhas costas, mas mesmo ela admitiu nunca ter passado por algo do tipo. Com tudo isso sendo considerado, ou conseguiríamos concluir nossa tarefa com facilidade, ou então enfrentaríamos o maior desafio das nossas vidas.
[...]
Só tivemos o tempo de acomodar nossos pertences em algum canto antes de começarmos os trabalhos. Para Seraph, não existia mistério de por onde deveríamos começar. Nesse meio tempo entre chegarmos e discutirmos os detalhes, outro civil com os
sintomas foi movido para a nossa agora "base de operações". Com a mulher de antes, eram então vinte e duas pessoas para que serem tratadas contra doze cavaleiros e aspirantes, que a partir daqui chamarei de médicos. Cada um de nós foi designado para um
paciente diferente. Nossa líder ficou com o que estava ali há mais tempo (pois um dos pontos contra um exorcismo é o quanto o espírito já se acomodou ao corpo), e então fomos nos espalhando com os mais experientes ficando com os civis a mais tempo naquela situação e vice-versa. Seraph não pediu por muitos aspirantes, então o grupo em sua maioria era formado por cavaleiros de bronze.
Eu sei o que você deve estar pensando "o que possessões tem a ver com a tarefa de um cavaleiro de Athena"? Eu admito que a situação não é usual, mas foi justamente isso que tornou tudo mais alarmante. Se fosse mesmo o caso de termos espíritos escapando do mundo dos mortos, então significaria que algo de muito errado estava acontecendo nos domínios de Hades. Seria esse um plano do Imperador do Inferno? Seria sensato da parte dele tentar retornar justo quando os Cavaleiros estão ocupados lidando com os Persas. Nós queríamos ajudar aquelas pessoas e aquele era o nosso objetivo principal, é verdade, mas no fundo a intenção de termos sido enviados até aquele lugar era simplesmente descobrir o que poderia estar acontecendo no Mundo Inferior.
Assim que me aproximei da cela improvisada, o meu paciente avançou contra as barras para tentar me ferir. Seu nome, segundo o prefeito, era Brian Smith. Eu recuei pelo susto, mas foi quando percebi que era um adolescente. Até então eu só tinha notado adultos por ali, então ver alguém mais jovem e com toda uma vida pela frente acabou me pegando de surpresa. Ele estendeu as mãos pelas brechas na tentativa de me alcançar, e ao olhar de relance acabei vendo que seus dedos estavam todos sem unha. Ele tinha arrancado? Provavelmente. Com medo de que o rapaz se ferisse ainda mais, eu corri até minha bolsa e utilizando uma toalha improvisei uma algema. Eu precisava tocá-lo para me conectar melhor, e ao prendê-lo próximo das barras seria mais seguro para nós dois.
Antes de me aproximar de verdade, eu olhei para os lados na intenção de tentar dar uma olhada em como o restante do grupo estava se saindo. Como as celas eram uma do lado da outra, estávamos ali todos próximos enquanto tentávamos cumprir com nossa tarefa. Também por causa disso, quanto mais de nós iniciávamos as nossas tentativas, mas o som naquele salão subterrâneo se tornava perturbador. Uma pessoa gritando de forma descontrolada já era incômodo o suficiente, mas as várias vozes ali estavam se unindo em uma melodia aterrorizante. Eu fechei os olhos e tentei abstrair todos aqueles sons da minha mente, porque se eu pretendia ajudar aquele garoto à minha frente, então eu precisaria dedicar todas as minhas forças somente a ele. E assim eu fiz.
Eu toquei a lateral do rosto do rapaz, um pouco abaixo da bochecha, no que ele começou a se debater na tentativa de morder a minha mão. Na verdade, ele parecia estar querendo se soltar, mas como não conseguiu acabou optando por outras maneiras de se impor. Apesar de estar bastante apreensivo com aquilo tudo, eu mantive o contato físico na tentativa de sentir melhor o espírito que tinha ali tomado conta daquele corpo. Cada alma desgarrada tem seu objetivo ao se tentar voltar ao mundo físico, e precisamos tomar tal objetivo e usá-lo contra o espírito para poder ter o controle da situação como um todo. Logicamente, é mais fácil explicar do que fazer.
Meu primeiro passo após me acostumar com a pressão da presença de Brian à minha frente foi novamente me concentrar. O ensinamento mais básico de um Cavaleiro diz que temos um universo dentro de nossos corpos e ao explodi-lo nós podemos realizar feitos incríveis com o nosso cosmo. Seraph acreditava que o cosmo ligava as pessoas e que com alguma concentração os universos dentro de nós poderiam se comunicar. Apesar de religiões diversas do nosso mundo terem suas próprias diretrizes de como esse tipo de "libertação" deve acontecer, a que mais se aproxima do método que lhes foi ensinado por Seraph é o espiritismo. Eu não sei quanto tempo se passou comigo tentando entrar em contato com o espírito que estava ali em Brian, mas demorou alguns bons minutos até eu conseguir ter um retorno.
Assim que senti que o canal tinha se formado, eu voltei a abrir os olhos e Brian, que antes apenas grunhia, começou a mover a boca como se tivesse de fato formando palavras, embora nenhum som estivesse saindo até então. O movimento me pareceu repetitivo, então tentei fazer a leitura labial, no que percebi que de fato se tratava de uma mensagem. Uma vez que o canal com o plano espiritual se abre, é possível conversar com os espíritos. Se ele for convencido a desistir da possessão, então a pessoa está livre. Eu acho que é relevante eu mencionar que por mais apegado ao mundo físico que um espírito seja, ele só tenta possuir alguém se ele realmente não for bom. Por conta disso, convencer sempre é complicado todo cuidado é pouco quando se está lidando com um desses.
A primeira mensagem então que me foi passada foi "eu não gosto desse lugar". Minha conclusão de imediato foi de se tratar de algum espírito que possuía alguma aversão à Lustwood e por conta disso tomou conta de um dos moradores do local como uma forma de se rebelar. Eu engoli seco, no que perguntei para ele o que o lugar tinha de tão ruim. Brian moveu os lábios sem formar de fatos palavras, para então uma voz fraca e grave começar a sair de sua boca. Ele me respondeu dizendo que tem gente demais e repetiu não gostar do lugar. A nova informação em nada agregou à minha hipótese inicial, então prossegui a conversa afirmando que se ele não gosta dali então era só ir embora. Minha surpresa foi a sua resposta ser "não posso ir".
Pela última declaração ter sido inesperada, eu travei por alguns segundos. Foi necessário respirar fundo para continuar, e só o fiz com mais rapidez ao lembrar a mim mesmo que o canal não fica aberto indeterminadamente. Eu precisava resolver aquilo o mais rápido possível para não arriscar ainda mais. Perguntei então o motivo dele não poder ir, no que sua resposta dessa vez foi um nome. Dois, na verdade. Louis e Sarah. Eu tentei perguntar quem essas pessoas eram, mas por mais que eu insistisse, daquele ponto em diante tudo que Brian (ou melhor, o corpo dele ainda sem seu controle) dizia era Louis e Sarah. Algumas vezes ele até invertia a falava Sarah e Louis, mas o ponto é que dali pra frente eu não consegui novas informações. Sem ter como forçar algo além, eu soltei as mãos de Brian e isso foi o suficiente para que ele retornasse para sua atitude feral de antes.
Enquanto eu tentava achar alguma saída, acabei acompanhando e auxiliando alguns aspirantes com dificuldade. Seraph ainda estava lidando com seu próprio paciente e não podia parar, e como eu estava empacado com meu próprio problema, talvez ajudar os outros me desse alguma luz. Aquele rapaz de antes, que eu estava explicando o motivo do grupo grande ter se reunido, se chama Noah. Ele também tinha sido designado para um civil, e apesar de ser o mais talentoso dentre os novatos ele costumava ficar nervoso muito facilmente. Ele tinha dez anos, dois anos mais novo que eu, então fui até ele e acompanhei o seu processo. A sua tarefa envolvia uma mulher. Comparado ao Brian, as marcas da "doença" ainda não estavam tão fortes nela, o que significava que o trabalho poderia ser um tanto mais fácil. Minha parte foi apenas ajudá-lo a se concentrar. Noah se aproveitou das raízes religiosas que a mulher parecia possuir para se conectar não com o espírito possuidor, mas a alma da sua paciente lá no fundo daquilo tudo. Ele fez o amor da mulher por seus filhos ser a sua fonte de força, no que isso sobrepujou a força do espírito que tinha tomado conta do seu corpo e, no fim, ela se livrou.
Eu achei extremamente astuto da parte do rapaz usar a própria força do possuído contra o possuidor, e foi nessa parte que eu tive um estalo quanto ao meu próprio caso. Pedi para que o prefeito fosse chamado, e enquanto eu esperava tentei organizar meus próprios pensamentos. Quando o homem chegou, eu fui até ele me apresentar devidamente e então fui direto em perguntar se dentre os moradores do vilarejo existiam alguns chamados Louis e Sarah. Depois de pensar por uns segundos, ele pareceu ter um estalo e mencionou que um dos moradores mais antigos do lugar eram os Stuart. No caso, Louis e Sarah Stuart. Ouvir isso me arrancou um pequeno sorriso, e eu prossegui questionando se eles tinham filhos. E sim, eles tinham. Tipo, literalmente
tinham: seu único filho tinha morrido de uma doença autoimune há alguns anos. Seu nome era Brian.
Assim que ouvi o nome tal nome eu fiquei todo arrepiado. Não podia ser uma coincidência. Um tanto agitado, pedi para que o prefeito fosse atrás dos Stuart e o levassem até ali. Uma hora se passou, e eu estava bastante inquieto. Noah estava descansando já que todo esse processo é por demais exaustivo e aproveitei para fazer o mesmo. Expliquei o que eu estava enfrentando ali, e ele concordou que de fato fazia muito sentido o que eu estava pensando. "É muita coincidência os nomes iguais", concordamos ao mesmo tempo em determinado momento.
O prefeito então retornou. Com ele, um casal de idosos. Eles pareciam mesmo ser bem velhos, e o senhor usava uma bengala para se mover. Se eu soubesse poderia ter arranjado outra forma de fazê-los vir, afinal não queria fadigá-los. De qualquer maneira, eles estavam ali. A primeira coisa que fiz foi explicar toda a situação. Detalhei todos os passos que tomei até o momento e eles ficaram completamente chocados quando eu repassei as mensagens do
espírito. Sarah simplesmente começou a chorar, no que Louis se manteve firme. Apesar da aura perturbadora do local, eles pareciam agora completamente dedicados a ver a verdade com os próprios olhos. Sem demorar, os guiei até a cela de Brian.
Como esperado, o rapaz assim que nos viu avançou contra as grades novamente. Eu usei a mesma tática de antes de amarrar suas mãos para fora, mas sabendo que eu tentaria isso ele se afastou até que eu não pudesse alcançá-lo. Como eu já tinha conseguido criar o canal antes, pensei que não precisaria de contato físico para o fazer novamente. De olhos fechados, me concentrei até que pudesse sentir o cosmo agora enfraquecido de Brian. Para minha surpresa, a partir dali as coisas fluíram de forma completamente positiva.
O que tinha acontecido basicamente era que Brian Stuart assim que conseguiu sua independência financeira saiu de Lustwood. Segundo Sarah, ele nunca gostou daquele lugar. Achava pequeno demais, sujo demais, não atendia às suas ambições. Quando ele teve Lúpus e negligenciou o tratamento, os seus pais o levaram de volta para Lustwood afim de passarem seus últimos momentos juntos. Louis explicou que apesar de tudo, os três sempre foram muito apegados. Eu concluí então que era um caso bastante comum de ter deixado uma pendência em vida: o espírito de Brian se sentia culpado por não ter se cuidado quando em vida e ter causado dor aos seus pais. Ele ter possuído o corpo de outra pessoa chamada Brian parecia ser apenas uma coincidência estranha. O lance é que depois deles conversarem e se resolverem (no que os deixei a sós) e o canal se fechar, Brian Stuart não estava mais ali, somente Brian Smith.
Enquanto eu descansava no canto, eu repassei todo o processo mentalmente como uma forma de fixar tudo. Em determinado momento, fiquei encucado com o "não posso ir" que o Stuart disse, mas logo deixei quieto já que aquele caso estava devidamente resolvido.
[...]
Algumas semanas se passaram. Apesar de alguns como eu terem tido sorte e conseguido lidar com seus pacientes mais rapidamente, outros encontraram extrema dificuldade. Além disso, mais pessoas continuavam aparecendo. Mesmo que todos estivessem se esforçando e se ajudando para lidar com tudo de uma só vez, sempre aparecia um novo problema para nos ocupar. Seraph parecia cada vez mais preocupada conforme os dias se passavam. Certa noite, nos reunimos fora do subterrâneo para uma reunião.
A líder tomou a palavra e a primeira coisa que fez foi explicar que apesar de realmente ali terem algumas pessoas possuídas, alguns de nós tinham encontrado casos por demais excepcionais. Foi o caso da própria, que ficou com o civil mais antigo afetado por aquela "epidemia". Por mais que ela tentasse, não conseguia se conectar com o cosmo do seu paciente. Não só não conseguia a conexão com o cosmo dele, como também falhou em estabelecer contato com o espírito que deveria estar ali tomando de conta. Outros quatro membros do grupo mencionaram ter enfrentado o mesmo problema, enquanto alguns mencionaram que também tentaram ajudar nesses casos, mas não conseguiram ter êxito algum. Eu não estava atualizando sobre tal situação, então fiquei por demais confuso. Como eles poderiam estar possuídos se nenhum espírito estava presente neles?
Nossa reunião foi interrompida por um grande barulho crescente vindo do depósito, a agora
clínica de reabilitação. Eram os grunhidos e urros que eles costumavam dar quando irritados, mas desta vez estava muito mais alto e eram todos de uma só vez. Fomos correndo para lá de volta, no que tentamos conter ou acalmar os
doentes que ainda restavam, mas a coisa só piorava. Foi quando todos fomos pegamos por um enorme abalo psíquico. Para mim, foi como se tudo escurecesse por um breve momento. Quando abri os olhos novamente, tudo estava diferente.
Foi uma visão. As imagens passaram diante dos meus olhos rapidamente. Em um momento estávamos ali mesmo, mas depois seguimos para ainda mais fundo, para um grande compartimento. Uma névoa de energia verde cortava o ar vinda de um vórtice de mesma cor. Eu vi todos nós lutando contra monstros feitos da mesma energia do vórtice, e então vi nossa vitória depois de matar vários desses monstros e o vórtice se dissipar. De repente, a visão cortou para outra dimensão. Lá o céu era vermelho e energia esverdeada fluía pelo chão de pedra negra. Monstros disformes que nunca vi antes corriam na minha direção, mas então se desfaziam na mesma energia que estava por todo lado, como se fossem tomados e unificados por ela. Uma sombra com vários braços aracnídeos flutuou bem diante de mim, no que moveu uma mão na direção da minha garganta. Quando ele estava prestes a me atingir, a visão estremeceu e no segundo seguinte eu estava de volta à frente das celas, suando frio e de joelhos.
Movi a cabeça com alguma dificuldade procurando pelos outros. Estavam todos caídos assim como eu, alguns ajoelhados, outros sentados. Os sons pareciam abafados, mas os doentes ainda estavam gritando. Tentei encontrar Seraph, no que ela foi a primeira a se levantar. Eu precisei ainda de mais algum tempo para recobrar todos os meus sentidos, no que fiquei de pé usando a parede de apoio. Àquela altura eu já estava completamente ciente do meu fardo com as visões premonitórias, então consegui lidar com aquilo com maior familiaridade. Minha surpresa, no entanto, foi não ter sido o único a ter aquela "revelação".
— O que... Foi isso? — perguntei olhando para a líder, embora eu não esperasse que ela de fato respondesse.
— Estão todos bem? — preocupada, ela checou se estávamos todos seguros. O prefeito então surgiu pela escadaria. Segundo ele, o barulho estava por demais alto e ele não conseguiu fechar os olhos para descansar. Confusos, todos continuamos esperando por alguma instrução de Seraph. Eu consegui sentir que ela própria estava perdida, mas era isso a fazia ser considerada a nossa líder: a forma que ela lidava com as adversidades melhor que todos nós
— Isso foi uma... Premonição? Não, não acho que foi isso. Eu acho que não era para que a gente tivesse visto isso. Sinto que fomos pegos no meio de algo bem maior.O que não podia ser pior, certo? Se a intuição de nossa grande líder estava apontando para tudo isso, então as chances de problemas ainda maiores aparecerem eram enormes. Todo o grupo continuou em silêncio e atento, ainda aguardando uma instrução. Eu não fui diferente. Estava assustado, sim, então não estava conseguindo raciocinar direito.
— Senhor Prefeito. Essa ala subterrânea por um acaso teria salas ainda mais abaixo? — Seraph perguntou, no que todos tivemos um estalo ao mesmo tempo.
— Sim, senhorita. Mais a fundo existia uma mina que há alguns muitos anos era a fonte de sustento do nosso vilarejo. Hoje ela está desativada, mas as passagens ainda existentes. — ele explicou.
— Sendo assim... — e ela não precisou falar muito mais. Ela selecionou o mesmo time que primeiro chegou em Lustwood e com o objetivo de investigar mais a fundo o que estava acontecendo naquele lugar, eles pretendiam descer ainda mais. O prefeito desejou sorte e voltou para a superfície, mas logo voltou completamente alarmado dizendo que mais várias pessoas estavam precisando de cuidados. A ordem de Seraph então foi simples: enquanto ela estivesse ausente, devíamos continuar o trabalho tal qual fizemos até ali. Ela mandou um grupo retornar com o prefeito para que pudesse fazer o transporte dos civis
doentes em segurança. Eu fiquei no grupo que permaneceria ali durante todo o tempo. E assim tudo se seguiu.
Aquela noite foi extremamente tensa. Em poucas horas, mais civis afetados apareceram que na última semana. Estávamos com sete quando os grupos se separam, e próximo da uma da manhã o número já tinha aumentado para absurdos quarenta, praticamente o dobro do máximo até ali. Não tínhamos sequer celas improvisadas sobrando para os alocar e deixá-los em segurança. Foi quando todos começamos a entrar em pânico. A primeira ideia foi mandar alguém atrás de Seraph para pedir ajuda sobre a forma que deveríamos lidar com aquilo tudo. A partir daí, comecei a me sentir incomodado com quão dependentes da nossa líder estávamos sendo. Ela estava cumprindo sua própria tarefa, e interromper com outros assuntos poderia atrapalhar de diversas maneiras. O plano se diluiu assim que ninguém parecia disposto a ir atrás da Amazona de Cefeu e seja lá o que poderia ter nas profundezas daquele vilarejo.
— O que estamos fazendo, afinal? — questionei a todos, dando passos à frente para que pudesse ser visto
— Eu sei que a situação parece fora de controle, mas tenho certeza que todos já enfrentamos situações assim antes. E se estamos aqui, é porque conseguimos nos virar. — continuei. Eu odiava essa ideia de ter que ir e dar sermão em alguém, ainda mais meus irmãos de treinamento. Pior ainda, porque eu era um dos mais novos e talvez acabasse sendo visto como petulante. Quer dizer, eu sequer tinha uma armadura para chamar de minha ainda, então parecia por demais dramático iniciar um discurso em tal situação, mas eu já estava me sentindo exausto de ficar parado só observando sem fazer algo a respeito
— Não vamos sempre ter um líder para nos dizer o que fazer. Temos que dar nosso jeito, qualquer que seja. Não podemos jogar todo nosso esforço fora porque nos rendemos ao medo. Somos melhores que isso. Muito melhores. — e, importante dizer, eu estava me sentindo completamente estúpido por fazer tal discurso motivacional. Mas ao olhar ao redor, notei que todos estavam olhando pra mim, atentos. Eu não sabia dizer se motivados ou me julgando, mas com certeza agora estavam pelo menos pensando em como resolver aquilo tudo.
Eu que organizei todas as ideias. Primeiro, sobre a falta de espaço. Na verdade, as celas tinham, sim, espaço, mas colocá-los juntos na mesma podia ser perigoso pro caso de começarem a se agredir. De minha experiência com minha primeira tarefa, eu sugeri que prendêssemos aqueles na mesma cela nas barradas numa distância segura uns dos outros. Quando eu dei a ideia, os outros médicos me perguntaram se eu estava falando sério, porque parecia um pouco demais amarrá-los. Mas o ponto é que pela segurança deles, o melhor a se fazer era limitar a sua movimentação.
Quando alocamos todo mundo, eu tomei a frente mais uma vez e assim como Seraph fez antes, dividi todos nós para que fôssemos cuidando de quem estava ali, do mais antigo para o mais recente. Reuni todos e pedi para que Noah explicasse como ele fez antes para ajudar sua
paciente, e então mencionei que para o caso do nosso método convencional não funcionar, também podiam tentar por esse. Ficamos todos surpresos ao aplicar o método do Noah de fazer o possuído lutar por seu próprio controle, porque ele funcionava de fato bem mais rapidamente.
O lance é que quando me dei conta, eu estava ajudando e guiando todos. Me senti meio estranho por ser a primeira vez que fui tão ativo em uma atividade do grupo, mas também satisfeito uma vez que tudo estava correndo bem. A madrugada se seguiu assim. Estávamos no nosso momento de descanso (afinal ao amanhecer estávamos completamente esgotados e dormir se fez necessário) quando o grupo de investigação de Seraph retornou. Ela permitiu que tivéssemos nosso devido descanso antes de explicar o que encontraram. Ainda bem.